Há anos não via Clarice, ela realmente tinha me deixado. Na verdade acho que eu também a abandonei. Fazia tantos dias que não pensava nela e para mim isso era uma forma de traição. Eu estava traindo Clarice.
Não pensar nela era uma meia-morte, se é que isso é possível. Morrer pela metade ou me sentir mais morto do que naqueles últimos anos. O mais irônico ou mais triste é que não fazia anos que Clarice havia saído por aquela porta, apenas meses, pouco mais de quatro se não me engano.
Quatro longos meses de saudade-e-delírio-e-solidão. Meus dias eram solitários e minhas noites uma tortura. Clarice não sabia, mas por mais que eu não pensasse nela nesses últimos dias o apartamento e eu ainda esperava a sua volta.
A xícara com a alça virada pro lado esquerdo, o colchão com o lado direito vazio, a tampa do vazo abaixada, os passarinhos lá fora, a poltrona de frente pra janela e eu. Todos esperando Clarice. Esperando em vão, talvez.
Mas por qual outro motivo continuaria nesse apartamento, nessa vida, nesse corpo se não fosse pra esperar ela? Eu tinha pouca coisa, confesso. Mas o pouco que tinha era dela.
Talvez houvesse outro motivo pra continuar ali. Precisa tanto das lembranças, que agora já falhavam, quanto do ar. Precisava respirar recordações, pra mostrar para mim toda a manhã ao acordar que a Clarice era real, que ela esteve ali do meu lado, no meu colo e comigo. Isso era uma forma de continuar alimentando a esperança que eu tinha dela reaparecer do nada.
Confesso que às vezes pensava estar louco. Imaginava formas e formas da Clarice voltar, ensaiava declarações, beijos, brigas, sexo. Eu imaginava todas as noites como amaria Clarice, como tiraria aquele baby-doll preto que ela sempre usava, como beijaria seu corpo como uma forma de matar a saudade que eu tinha de cada linha, cada curva dela. Imaginava como seria sentir de novo aquele cheiro bom que só ela tinha aquele onde o pescoço deixa de ser pescoço pra ser ombro. Imaginava cada reação de Clarice ao sentir meu toque, imaginava minhas mãos sedentas por sentir o contato com a pele de Clarice. Imaginava como seria o reencontro das nossas bocas, dos nossos corpos, das nossas almas, como seria sentir de novo seu gosto, seu gozo. Imaginava, imaginava, imaginava, imaginava e acordava de novo, mais uma vez sozinho abraçado na ausência de Clarice.
O mais frustrante era que depois de tanto tempo minha memória falhava, tinha que me esforçar pra lembrar como era amar Clarice. E em meio a tantas falhas e faltas pensamentos me invadiam a cabeça. Pensamentos de como Clarice estaria sendo amada por outros homens, e moleques e moças e mulheres. Quantas mãos teriam conhecido aquele corpo depois da minha, quantas bocas beijaram Clarice por inteira como eu fazia incansavelmente todas as noites e manhãs e tardes e. E agora? O que o tempo faria de mim, das minhas recordações? E desse amor-possessivo-estranho-intenso que tinha por Clarice, que não voltou mais pra cidade, pro apartamento, pra xícara-com-a-alça-sempre-virada-pro-lado-esquerdo e pra mim.
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