domingo, 18 de julho de 2010

Um deserto de almas nem tão desertas!


O céu não estava recheado de estrelas e nem a lua estava cheia, a noite não era de verão e nada além do frio fazia as peles, até então distantes uma da outra, arrepiar. Não era o alinhamento dos planetas, não teve nenhum acontecimento extraordinário depois do primeiro olhar e os sinos não tocaram depois das primeiras palavras trocadas. Não tocava ‘’Tu me acostumbraste’’ e ali o universo era grandioso demais para nomeá-lo como um deserto de almas, nem por isso deixou de ser especial.

Elas não dividiam nada mais do que uma Sangria, feita de vinho tinto e pouco açúcar a pedido da mais nova, que tinha um cuidado maior com o corpo e a saúde, e algumas feridas, que a mais velha sabia de cor os buracos feitos pela chuva ácida que os humanos provocavam.

E começou mais ou menos assim:

[...]

- Você precisa de alguém para cuidar de ti.
- É, preciso.
- Eu cuidaria de você. Juro.
- Mesmo do outro lado da montanha?
- E leria Caio para você antes de dormir. Aprenderia a cozinha e te acompanharia ao teatro.
- E nossa vida teria um ritmo calmo né?
- É. O ritmo que precisamos.
- E que merecemos.

[...]

Mesmo assim, uma imaginando a dor da outra, elas estavam confortáveis como nunca, ali no subterrâneo da rua XV, onde a mais nova se escondia em dias de sol forte e a mais velha em dias de céu claro e mesmo com toda claridade elas eram, e provavelmente continuariam a ser, invisíveis para os humanos.



Naquele momento elas descobriam que não só o amor pode unir as pessoas. A dor delas elas tão parecidas que o sangrar do coração doía no mesmo compasso e uma voz mansa perguntava solitária no ouvido de cada uma:

‘’Seria possível isso?’’

As impossibilidades de tantos amores-platônicos teria tornado as duas, cada qual em sua rotina de retinas cansadas, um pouco incrédulas para histórias como paixão-a-primeira-vista e fica-comigo-essa-noite.

Até porque eram tantas eternas-paixões-que-duravam-apenas-uma-noite que as almas já estavam cansadas de tantas movimentações,elas pediam sossego. E cansadas dessa procura constante por um norte, por um porto, por um corpo acabaram no mesmo lugar.

Elas já não usavam palavras grandes como ‘sempre’ e ‘nunca’. Ficavam sempre no talvez e nesse talvez elas se encontraram. Encontraram-se sem se quer notar. Quando a mais velha deu por si a mais nova já tinha perguntado rompendo o silêncio que se fazia presente, junto ao medo visível de quebrar o encanto tão leve e frágil:

[...]

- Eu posso te amar. Quer me amar também?
- Quero. Por quê?
- Porque não quero ser uma formiga.
- Ah!

[...]

E a pergunta ecoava pela montanha que as separava e continuava separando, mas que agora era uma distância tão frágil que poderia ser quebrada com um olhar doce. E era como se aquela palavra ‘amar’ criasse asas e só o fato de ser, ou não, uma possibilidade remota de sobreviver ao deserto-de-almas-também-desertas faziam correr um sorriso calmo pelo rosto delas, que agora tinha o mesmo tom, mesmo em lados distintos da montanha.

O silêncio se fazia presente. E era visível o medo de quebrar o silêncio e com ele o encanto tão leve e frágil e bonito. Mas era preciso perguntar.

[...]

- Você gosta de abacaxi?
- Prefiro laranja.
- É bom com canela sabia?
- Laranja?
- Não, abacaxi.
- Ah, nunca comi assim.
- Um dia a gente come.

[...]

E assim o deserto de almas agora nem tão desertas continuava a existir. E elas não sabiam absolutamente nada uma da outra, não faziam idéia dos traumas de infância, das brigas, das cicatrizes, muito menos dos vários amores-encontrados-perdidos-reencontrados, mas elas sentiam que tanto uma quanto a outra resistiam às tempestades por um único motivo: dividir algo além daquele lençol sem dobra.

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